Todo ano espero ansiosa a chegada da estação mais fria do ano. O inverno traz muitas coisas gostosas. O cheiro da fogueira, a alegria das festas juninas e o gosto dos pinhões. É delicioso comer pinhão em noites frias, esquenta o corpo e aconchega o coração. Seu gosto inconfundível é intenso e ao mesmo tempo guarda o frescor de broto da vida. O pinhão é uma semente muito especial. Além de delicioso alimento, suas cascas podem ser aproveitadas para tingir. E sabe o que brota quando plantamos a semente do pinhão? A araucária! Neste texto você vai descobrir as cores da araucária e porque é uma árvore tão especial.
Da semente do pinhão nasce a araucária
Descobri já adulta que o pinhão vinha da araucária. Foi em uma caminhada muitos invernos atrás em São Fracisco Xavier, Serra da Mantiqueira paulista. O chão estava forrado de pinhões. Me encantei e, como uma criança, enchi meus bolsos com a iguaria. Mas, peraí, de onde vem tanto pinhão? Pinhão não vêm do sul? Olhei para cima e pasmei: muitas araucárias estendendo seus galhos para o céu.
A araucária é uma árvore majestosa. Difícil passar despercebida. Na presença dela, sinto vontade de silenciar e venerar. Tamanha força, explica-se: ela é quase um fóssil vivo. Existe desta mesma forma a 200 milhões de ano. Ela testemunhou os dinossauros.
A Araucaria angustifolia, também conhecida como pinheiro-brasileiro ou pinheiro-do-paraná, é 100% brasileira e uma das espécies mais importantes no sul do país. Muito antes da chegada dos portugueses, o pinhão era uma das bases da alimentação tradicional dos Kaingang – etnia indígena da Região Sul – e está presente até hoje na vida dessas comunidades. Em seus rituais funerários são usados troncos de araucária para servir uma bebida feita com mel, milho e água. Neste vídeo, produzido pelo Coletivo Catarse, Maurício Salvador fala sobre a estreita relação de seu povo com a mata de araucária.
Não são só os indígenas que usufruem da araucária. Ela foi, e é, de grande importância social, econômica, ambiental e cultural para as regiões Sul e Sudeste do país. É realmente muito triste constatar como nós brasileiros não sabemos cuidar de nossas riquezas. Os dados a seguir foram encontrados em uma publicação da Embrapa em parceria com a UFPR:
"No Brasil, antes da colonização, as matas de araucária chegaram a estender-se por 185 mil quilômetros quadrados. Na Região Sul, um terço da superfície estava coberta por araucárias. Porém, começaram a tombar ainda na segunda metade do século 19 e, por mais de 100 anos, sua madeira de excelente qualidade (resistente e maleável), serviu para erguer casas, fabricar móveis, construir ferrovias e levantar cidades. Cerca de 100 milhões de araucárias nativas viraram toras nas serrarias do Sul e do Sudeste e, em 1963, a espécie representava 92% das exportações de madeira do país. A derrubada da araucária para uso da madeira atingiu seu auge na década de 1970 e a falta de plantios encerrou este importante ciclo econômico da região Sul do Brasil. Da área original de floresta de araucária, que antes cobria as serras meridionais brasileiras, restaram apenas 2%, tornando-se o ecossistema mais devastado do país. Seu grande valor madeireiro a condenou à quase extinção no final do século 20 e, atualmente, a espécie se encontra incluída na lista oficial de espécies ameaçadas de extinção." (Araucária particularidades, propagação e manejo de plantios, de Ivar Wendling, Flávio Zanette, editores técnicos)
A única chance que temos de continuar usufruindo desse incrível símbolo de resistência que é a araucária é plantando. Instituições como a Apremavi, SOS Araucárias ou SOS Mata Atlântica formatam e divulgam projetos de restauração e plantio em áreas devastadas. Alguns projetos são abertos para a participação de todos nós. Sigamos os exemplos dos índios que há 1000 anos já plantavam araucárias para as próximas gerações, segundo recentes pesquisas de arqueólogos do Brasil e do Reino Unido.
“A araucária protege o solo e protege os pássaros. Estamos preocupados com os últimos pássaros e com os últimos índios que sobrevivem aqui nessa região.”
Essas são as palavras de Luís Salvador Kaingang, o Saci, cacique de Rio dos Índios-RS, que junto com sua tribo plantou de 4 mil mudas de araucária na ocasião da demarcação de suas Terras Indígenas. Inspirador, não?
As cores da araucária – Tingimento natural
Existe outro motivo para eu gostar tanto dos pinhões. Depois de me saciar com essa delícia, guardo as cascas e a água da fervura para preparar uma tintura natural que tinge lindamente. Os tons da araucária podem variar de um rosa antigo até um marrom profundo, passando por um acobreado. Nuances da terra tão antiga quanto a araucária. Esses tons variam se usamos as cascas do pinhão, as cascas do tronco ou as folhas para tingir. E mudam de intensidade dependendo da quantidade utilizada. Na postagem Plantas que tingem - Macela, detalho um pouco mais sobre o processo do tingimento natural. Se esse texto é seu primeiro contato com o assunto, vale a pena a leitura.
Cada pinhão é uma semente, encaixada na pinha da araucária. A pinha, como em qualquer pinheiro, é a flor da araucária, tem tamanho parecido ao do melão e carrega cerca de 100 pinhôes. Quando ela cai no chão de uma altura muitas vezes de 15 metros, espatifa soltando os pinhões. Nas fotos a seguir, apresento a pinha, as cascas do pinhâo e o resultado de seu tingimento.
Esta última foto mostra uma echarpe de viscose que tingi utilizando uma proporção de 300% de cascas do pinhão junto com a água que sobrou de seu cozimento. A proporção de 300% equivale ao peso do tecido a ser tingido. Neste caso usamos um tecido que pesa 110g. Então utilizei 330g de cascas de pinhão para preparação da tintura.
Como em qualquer processo de tingimento natural, o mordente também é determinante na cor final do tecido. Nesta echarpe de viscose utilizei a decoada. Para saber mais sobre os mordentes – substâncias que fixam a tintura nas fibras do tecido – leia a postagem Plantas que Tingem - Macela.
Na foto a seguir, as amostras de linho – que foram tingidas junto com a echarpe de viscose – mostram a variação de cores que consegui usando 3 mordentes diferentes.
As cascas do tronco e o próprio tronco da araucária possuem maior poder tintório do que as cascas de pinhão. Porém são mais difíceis de conseguir. Você precisa ter a sorte de encontrar seus troncos caídos ou recolher a serragem que sobra do seu corte. Nas fotos a seguir apresento o tronco da araucária e alguns trabalhos tingidos com cascas e pedaços de troncos recolhidas no chão em um passeio em Canela-RS e no Museu Casa do Sertanista em São Paulo.
A terceira foto – primeiro resultado do tingimento – mostra um lenço de seda que tingi com 200% de cascas da araucária, utilizando a decoada como mordente. A tintura que sobrou deste processo, foi utiizada para tingir os lenços também de seda que aparecem na última foto. Eles foram tingidos através da técnica de impressão botânica. As nuances marrons que emolduram as outras cores é a tintura de araucária onde os lenços foram mergulhados. Essa cor escura e intensa foi alcançada graças ao mordente de ferro.
As folhas da araucária também são tintórias e podem ser usadas na preparação da tintura. Seu tom é bem mais claro do que as cascas do pinhão e do tronco. As folhas frescas dão um efeito muito interessante quando usadas na impressão botânica. Mas muito cuidado: elas espetam para valer.
Entendeu porque a araucária é uma árvore tão especial? Até mesmo no quesito tingimento natural, ela é um espetáculo de cores, versatilidade e beleza.
Araucárias além da Região Sul
Esta litogravura de 1835, Johann Moritz Rugendas retrata a Dança Batuque. Três araucárias ganham destaque na paisagem ao fundo. Sabe-se que Rugendas, pintor de origem alemã, viajou por São Paulo, Minas Gerais, Mato Grosso, Espírito Santo, Bahia e Pernambuco, retratando a paisagem natural, a fauna, a flora, os tipos humanos e costumes brasileiros. Em muitas de suas obras são as araucárias, e não só os coqueiros ou palmeiras como nosso imaginário tropical acredita, que dominam a paisagem.
Fiquei fascinada quando descobri que a incidência natural de araucárias se estende também pelas partes altas de todos os estados da Região Sudeste. E mais encantada ainda quando descobri que a cidade de São Paulo era cheia de araucárias. Dá para acreditar? Quantas sobraram? Conheço algumas poucas aqui e acolá...
E continuo assombrada:
"Nos tempos coloniais, o rio Pinheiros foi chamado de Jurubatuba, que, em língua tupi, significa "lugar com muitas palmeiras jerivás", pela junção dos termos jeri'wa ("jerivá") e tyba ("ajuntamento"). Passou a ser chamado de rio Pinheiros pelos jesuítas, em 1560, quando eles criaram um aldeamento indígena de nome Pinheiros. Foi chamado assim por causa da grande quantidade de araucárias (ou pinheiros-do-brasil) que cobriam a região. O principal caminho que dava acesso à aldeia era o Caminho de Pinheiros, que, hoje, é a Rua da Consolação." (Wikipédia)
Depois que soube deste fato, não sosseguei enquanto não achei uma imagem antiga que retratasse araucárias em São Paulo. Encontrei uma única:
Esta foto do Jardim da Luz, tirada em 1901 por Guilherme Gaensly, ilustra uma postagem do blog Árvores de São Paulo, escrito pelo botânico e paisagista Ricardo Cardim.
Segundo ele, "Uma ausência atual no Parque da Luz são as araucárias (Araucaria angustifolia), pinheiro nativo da cidade de São Paulo e que já foi abundante por ali no final do século XIX, como mostram os postais de Guilherme Gaensly."
Sem mais palavras.
Resistência e generosidade
Quanto mais eu descubro sobre a araucária, mais cresce a minha admiração por esta árvore. Ela é símbolo de resistência, está aqui no planeta há 200 milhões de anos e ainda sobrevive, firme, forte e frutificando, apesar do descaso de muitos. E continua, em sua imensa generosidade, a nos presentear com alimento, proteção, madeira, beleza e cores.
Deixo aqui mais um vídeo do Coletivo Catarse para que possamos admirar um pouco mais essa árvore incrível.
Muito obrigada, Araucária!
Conheça alguns produtos da loja online tingidos a mão com araucária:
Créditos
Fotografias de Gil Gosch exceto as indicadas.
Sites
Bibliografia
WENDING Ivar e ZANETTE Flávio. Araucária: particularidades, propagação e manejo de plantios. Brasília-DF: Embrapa, 2017. 159 p.
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