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Plantas que tingem – Macela



Você sabia que tempos atrás os travesseiros das crianças eram recheados de delicadas flores perfumosas? Pois foi assim a primeira vez que ouvi falar da macela. Ou marcela-do-campo como algumas pessoas também chamam. É uma planta muito especial que nasce espontaneamente em campos e capoeiras do Brasil, principalmente no Sul e Sudeste. E além de enchimento de travesseiro, ela é medicinal e como se não bastasse é também uma planta tintória! Isso quer dizer que ela tinge lindamente tecidos e fibras. Foi por isso que me apaixonei pelas suas cores e usos. E nesses tempos difíceis de quarentena é muito importante conhecer melhor plantas como essa, que podem fazer tanto pela gente. Por isso quero compartilhar com você as muitas facetas desta plantinha maravilhosa, começando pelo tingimento natural.



As cores da macela – Tingimento natural



É delicioso tingir com macela. Quando preparo a tintura, que é basicamente um chá bem forte, toda a casa fica tomada com seu perfume de campo. No tingimento natural, na maioria das vezes, a cor da planta não permanece a mesma cor quando tingimos o tecido. No caso da macela, sim, o mesmo amarelo de suas flores é a cor resultante no tecido. Além desse amarelo brilhante, ela pode ser verde, dourada ou um amarelo mais pálido. A cor vai depender principalmente de 3 variáveis:


  • A tintura – quantidade de planta utilizada;

  • O mordente utilizado;

  • O tipo de tecido tingido.


No tingimento natural existem muitas variáveis que determinam a cor final do suporte onde vamos tingir. Como essa é uma tintura viva, orgânica, é praticamente impossível repetir exatamente a mesma cor em outra sessão de tingimento. Além desses elementos básicos que citei acima, existem outros fatores que exercem influência no processo de tingimento e que são difíceis de serem controlados: qualidade da água, origem da planta, e estação do ano, por exemplo.



A tintura Quantidade de planta utilizada

Na receita tradicional para a produção da tintura, utilizamos 100% do peso do tecido da planta seca ou fresca. Isto quer dizer que para tingirmos 50g de tecido, preparamos a tintura fervendo 50g da planta em água por 20 minutos.


Porém, podemos usar menos quantidade de planta para obtermos um tom mais claro. Existem plantas que tem o potencial tintório muito alto e mesmo usando uma concentração menor, elas vão tingir. É o caso da macela:

Podemos comparar os tons de tingimento dos tecidos e da meada das duas imagens acima. Na foto da esquerda temos o produto do tingimento de 110g de fibras – somando o tecido de algodão cru e a meada de fio de algodão. Foram utilizadas 66g de macela, numa proporção de 60%. Para a foto da direita, tingi 400g de tecido, neste caso uma tricoline de algodão, com 120g de macela, ou seja, uma proporção de 30% de tintura.


Para conseguirmos alcançar a proporção da receita clássica, temos que dispor de um volume grande de planta, principalmente se estamos tingindo algodão grosso – um tecido muito pesado. Imaginemos que para tingir 1 quilo de tecido, precisamos de 1 quilo de planta!



O mordente

Ao lado das plantas tintórias, os mordentes são a alma do tingimento natural. São as substâncias responsáveis pela fixação da cor no tecido através de uma reação química que “morde” o corante fixando-o nas fibras. A palavra vem do latim mordente, particípio passado do verbo mordere que significa morder. Geralmente são substâncias do reino mineral – algumas são de origem vegetal – que modificam muito a cor da tintura no tecido. Nessas amostras tingidas com macela eu usei 3 tipos de mordentes:


  • Alúmen (sulfato de potássio e alumínio) – é um sal, também conhecido como pedra hume. É o mordente mais utilizado e, em linhas gerais, deixa as cores mais claras e brilhantes, em geral com um tom tendendo para o amarelo;

  • Decoada – é um dos mordentes mais antigos e tradicionais feito a partir das cinzas de madeira, palha ou folhas secas. Adoro produzir e usar este mordente que deixa as cores mais avermelhadas;

  • Acetato de ferro – é feito com pregos enferrujados, pela receita caseira que utilizo. Geralmente escurece as cores, e no caso da macela, o tecido ganha um tom esverdeado.

Nesta foto mostro o detalhe de 2 echarpes de seda tingidos com macela no mesmo dia. No da esquerda usei o alúmen, e no da direita acetato de ferro. Consegui duas cores totalmente diferentes com a mesma tintura, apenas mudando o mordente!



O tipo de tecido

Os tecidos usados no tingimento natural precisam ser aqueles produzidos com fibras naturais. Os tecidos de fios naturais podem ser divididos em dois grupos:

  • Fibras de origem animal ou protéica, como a seda e a lã.

  • Fibras vegetais ou celulósicas, como o algodão, o linho, o cânhamo, o bambu, o rami e a juta.

Cada um desses grupos de tecido recebe a tintura de forma muito diferente. Os tecidos de seda e lã tem muito mais afinidade para a tintura dos que os de origem vegetal e por isso são bem mais fáceis de tingir.

Na foto do lado esquerdo, usei a macela para tingir uma echarpe com tecido de algodão, e na foto da direita, um lenço de seda pura. Repare na diferença de brilho e tonalidade. A seda quando mergulhada na tintura, recebe a tinta de forma mais rápida e homogênea que o algodão. Sem falar que o algodão passa por um longo processo de lavagem e preparação antes de receber a tintura. Estas diferenças também se estendem para os muitos tipos de seda, algodão, linho, entre outros. Cada um recebe a tinta de uma maneira única dependendo de sua espessura, trama, origem etc. Um mundo de possibilidades a serem descobertas.


Impressão botânica



Podemos nos divertir tingindo com o que temos em mãos no momento. E se, por acaso, tivermos somente 3 raminhos de macela, é perfeitamente possível tingir: através de outro processo mágico chamado Impressão Botânica. Olha só o resultado:


Impressão botânica é uma técnica de tingimento natural em tecido ou papel na qual as plantas tintórias são colocadas diretamente sobre o suporte onde a tinta se fixará. O resultado é uma transferência direta dos compostos tintóreos da planta para o tecido.


Para a produção desse tipo de gravação, enrolamos a folha, pétala ou flor firmemente em algum tipo de suporte e colocamos o mesmo numa fonte de calor. Esta pode ser água fervente ou vapor. As impressões e estampas deixadas no tecido são os pigmentos liberados pelas plantas. O resultado desse processo é imprevisível, cada tecido impresso é único, sendo muito difícil repetí-lo, o que traz um encantamento extra para esta técnica. Podemos usar pouquissima planta tintória com resultados incríveis.


A criação desta técnica é atribuída a artista australiana India Flint. Por isso, também é muito conhecida como Ecoprint, sua denominação em inglês.


Pretendo dedicar uma postagem completa sobre esta técnica encantadora aqui no blog. Acompanhe!



Erva medicinal e sagrada


Nunca tive a felicidade de ver a macela crescendo na terra. Ela nasce fácil, é até considerada erva-daninha, mas não resiste ao avanço de ruas e construções, entulhos e lixos jogados por aí. Como moro em São Paulo fica bem difícil achá-la. Aproveito para me abastecer de macela quando vou a Porto Alegre, quase sempre na época da Páscoa para visitar meus sogros. Esta é a época de sua colheita e o Mercado Público de Porto Alegre se enche com o perfume de suas flores. É um encanto para os olhos.


No Rio Grande do Sul, macela é planta sagrada para os católicos. “Há uma crença em relação à colheita da macela na noite da Sexta-feira da Paixão que perpassa séculos. Atribuem-se os efeitos medicinais dessa planta à magia de sua colheita, que deve seguir alguns rituais. Um deles é apanhá-la antes que nasça o sol, pois a mesma tem que estar molhada com o orvalho da noite da Sexta-feira santa. Águas dos céus de uma noite sagrada que envolve a planta, dando a ela os poderes 'sobrenaturais' que muitos acreditam que tenha. É uma tradição que se repete ano a ano no período da quaresma. (…) O porquê da tradição, ninguém sabe.” (trecho do livro "O encantamento da Sexta-Feira Santa", de José Carlos Pereira).


E como na maioria das vezes a sabedoria popular é certeira, esta é realmente a melhor época do ano para sua colheita, já que a planta está no auge de suas forças. Seu chá, muito aromático, é anti-inflamatório e sedativo leve. Também é indicado para má digestão e cólicas intestinais. Suas flores macias eram usadas para encher os travesseiros dos bebês, justamente pelo seu efeito relaxante para um bom sono.


Eu uso muito o chá da macela para desconforto gástrico: "é tiro e queda". No vídeo a seguir, dona Cecília explica direitinho para o que serve a macela. Esse vídeo faz parte do belo projeto do Coletivo Oyá, um grupo da região da Chapada dos Veadeiros que atua na área audiovisual com o objetivo de preservar e conhecer o bioma do cerrado.


A macela, que tem um nome científico bem difícil de pronunciar Achyrocline satureioides ou Achyrocline alata, também é alvo de estudos científicos. Veja o que nos diz Daniel Forjaz, biólogo especialista em plantas medicinais em seu site:


“Cientificamente é comprovado que seu uso tem efeito analgésico, anti-inflamatório e relaxante muscular, tanto interno como externo, o que faz da planta muito eficiente contra cólicas, por exemplo, e para problemas musculares gerais. É importante salientar que as pesquisas demonstram que esta espécie não tem efeitos tóxicos, ou seja pode-se fazer uso com bastante segurança. Um estudo no Japão mostrou que a Macela tem um alto poder antitumoral, reduzindo em até 67% o desenvolvimento de células cancerosas. Nos EUA provou-se sua atividade antiviral, combatendo com muita eficiência o desenvolvimento do vírus HIV. Outros estudos demonstram sua capacidade em melhorar a ação do sistema imunológico, inclusive contra efeitos inflamatórios. Com alto efeito antioxidante, a Macela demonstrou num estudo sua ação em evitar os danos causados na pele pelos raios UVA e UVB. Outro efeito validado foi sua ação antiulcerogênica, ou seja, ela tem a capacidade de proteger o estômago da formação de úlceras. Outra importante ação validada é a protetora do fígado e estimulante digestiva. Ainda a atividade de controle da glicemia foi verificada em alguns de seus princípios ativos.”


Pois é: a macela é uma plantinha linda, cheirosa e muito poderosa!



Memórias, travesseiros e a boneca Emília


Sempre fico fascinada em perceber como os cheiros nos conectam diretamente com nossas memórias afetivas. E com a macela não é diferente. Como eu só conheci a macela pessoalmente já adulta, trabalhando com o tingimento natural, transcrevo as palavras de Bruno Ferns, amigo que mora no interior de São Paulo.

"Macela me lembra infância... Aqui na roça a gente brincava embaixo, e fazíamos travesseiros. Sinto o cheiro só de falar. Tem cheirinho de chá, de sono, de tranquilidade... É tão nostálgico de relembrar."

E foi o Bruno também que me contou que a boneca Emília, do Sítio do Pica-pau Amarelo é feita de macela! Nunca li nada de Monteiro Lobato, apesar dos seus personagens povoarem meu imaginário infantil; eu era fã do seriado da TV, não perdia um. E claro que adorava a Emília, a boneca mais espevitada e linguaruda da literatura infantil. Curiosa fui pesquisar e achei o trecho em que a própria boneca se descreve. É no livro Memórias da Emília, de 1936. A leitura é deliciosa, vale a pena:


“– É que o começo é difícil, Visconde. Há tantos caminhos que não sei qual escolher. Posso começar de mil modos. Sua idéia qual é?

– Minha idéia – disse o Visconde – é que comece como quase todos os livros de memórias começam – contando quem está escrevendo, quando esse quem nasceu, em que cidade

etc. As aventuras de Robinson Crusoé, por exemplo, começam assim: "Nasci no ano de 1632, na cidade de York, filho de gente arranjada etc".

– Ótimo! – exclamou Emília. – Serve. Escreva: Nasci no ano de... (três estrelinhas), na cidade de... (três estrelinhas), filha de gente desarranjada...

– Por que tanta estrelinha? Será que quer ocultar a idade?

– Não. Isso é apenas para atrapalhar os futuros historiadores, gente muito mexeriqueira. Continue escrevendo: E nasci duma saia velha de Tia Nastácia. E nasci vazia.

Só depois de nascida é que ela me encheu de pétalas duma cheirosa flor cor de ouro que dá nos campos e serve para estufar travesseiros.

– Diga logo macela, que todos entendem.

– Bem. Nasci, fui enchida de macela que todos entendem e fiquei no mundo feito uma boba, de olhos parados, como qualquer boneca. E feia. Dizem que fui feia que nem uma bruxa. Meus olhos Tia Nastácia os fez de linha preta. Meus pés eram abertos para fora, como pés de caixeirinho de venda. Sabe, Visconde, por que eles têm os pés abertos para fora?

– Há de ser da raça – respondeu o Visconde.

– Raça, nada. É o hábito de ficarem desde muito crianças grudados ao balcão vendendo coisas. Têm de abrir os pés para melhor se encostarem no balcão, e acabam ficando com os pés abertos para fora. Eu era assim. Depois fui melhorando. Hoje piso para dentro. Também fui melhorando no resto. Tia Nastácia foi me consertando, e Narizinho também. Mas nasci muda como os peixes. Um dia aprendi a falar.”



Macela, mon amour


E então? Já se apaixonou pela macela como eu?


Se você não vê a hora de conhecer esta plantinha e mora numa cidade grande como eu, procure em farmácias que vendam fitoterápicos ou casas especializadas em ervas. Um bom chá de macela é "tiro e queda" para a má-digestão. E ainda ajuda muito nosso sistema imunológico!


E se você se animou tanto que quer se divertir tingindo tecidos com macela, não deixe de seguir o blog, se cadastrando na minha lista de e-mails. A próximo postagem, dia 26 de maio, será um tutorial simples de como tingir com casca de cebola que pode te guiar nos seus primeiros passos no tingimento natural.


E para conhecer os produtos da minha loja que são feitos com macela, os links estão aqui:



Muito obrigada pela leitura. Seria muito bom receber seu comentário, sugestão ou dúvida sobre este texto. Pode ser por email acessando este formulário de contato ou enviando uma mensagem pelo direct do instagram. Assim consigo afinar a sua expectativa com a minha intenção.


E que possamos nos encontrar na próxima postagem muito bem!



Créditos


Fotografias de Gil Gosch exceto a indicada na imagem.


Ilustração da Emília de autoria de J. U. Campos.






Bibliografia


FLINT, India. Eco colour: botanical dyes for beautiful textiles. Fort Collins: Interweave, 2008. 238 p.


LOBATO, Monteiro. Memórias da Emília. São Paulo: Globo, 2007.


PEREIRA, José Carlos. O encantamento da Sexta-Feira Santa. São Paulo: Annablume, 2005. 293 p.


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